sexta-feira, agosto 18, 2006


Humberto Borges ©

O cheiro a café remetia-a ainda hoje para a lembrança do pai e para um enorme sentimento de segurança. O sentimento que lhe vinha quando, em nova, todas as manhãs, ainda na cama, sentia o cheiro a café que a mãe acabara de fazer para o pai, enquanto este entrava e saia do quarto e da casa de banho e passava apressado à porta do seu quarto, arranjando-se para ir trabalhar. Imaginava-o sempre a vestir desajeitadamente a roupa que a mulher lhe escolhera no dia anterior e que aprumadamente havia alinhado em cima da cadeira, e ria-se baixinho. Ria-se por o pai, apesar de ser aquele homem grande e imponente, ter a roupa escolhida pela mulher.
O cheiro forte a café vinha sempre misturado com o cheiro doce, quente e intenso do banho que o pai acabara de tomar e do perfume que pusera. Sem nunca ter percebido porquê, naquele momento, enquanto permanecia na cama à espera da sua própria hora para se levantar, e com aqueles cheiros que suavemente lhe entravam por baixo da porta, sentia-se a pessoa mais protegida do mundo, que tudo estava bem, que a normalidade regressara à casa depois de uma noite cheia de insónias. Dela e dele. Sabia que o dia seguiria o seu rumo normal e isso confortava-a enormemente.
Sempre teve a imagem do pai muito ligada a cheiros. Fosse da laranja que ele lhe descascava fazendo-lhe uma máscara de elefante com a casca, o que a fazia rir perdidamente. Fosse dos rebuçados de anis que encontrava na fábrica de doces onde, qual sonho de qualquer criança, o pai a levava todos os verões. Fosse pelas inúmeras arvores que o pai plantara no quintal, desalinhadamente e umas em cima das outras, e às quais ela subia para apanhar a fruta, deliciando-se com o cheiro das ameixas, das peras e das nêsperas. Fosse do campo que havia por trás do curral da casa de férias que todos os finais de verão se enchia de montes de feno com um cheiro seco e estival e para os quais o pai a incentivava a saltar. Fosse pelo alecrim que ele lhe plantara no jardim, mesmo ao pé do portão, qual sentinela, e cujo cheiro que desprendia após uma forte chuvada lhe dizia que havia chegado a casa.
Curiosamente, o pai sempre lhe dissera que nada lhe cheirava a nada. Curiosamente também ela nunca tinha podido beber café. Deixava-a nervosa e ansiosa. Mas mais curioso ainda era que, aos poucos, ela própria ia perdendo o cheiro de tudo.

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