sábado, março 15, 2008

Pois...


Humberto Borges ©

o maior segredo por Fernanda Câncio

Há muitos segredos que não se contam às crianças. Os do sexo, desde logo – geralmente esperamos até ser tarde de mais e não haver nada para revelar – e os outros todos que mesmo que contássemos elas não perceberiam. O mais segredo de todos, tão misterioso que até o é para nós, é o da diferença entre as crianças e os adultos. E o segredo, naturalmente, é que não há diferença. Nenhuma.Calma: não estou para aqui a fazer a apologia de actividade criminosas. Falo da ideia que as crianças têm dos adultos. De como quando se é adulto se sabe sempre o que fazer e de que forma, a diferença entre o bem e o mal, o sítio onde virar para ir dar ao sítio certo. De como se é sério e compenetrado e responsável, de como nunca se fazem palermices ou coisas potencialmente perigosas só para ver como é e ao que sabe. De como não se tem medo do escuro nem de estar só, de como não se chora quando um brinquedo ou um objecto de que se gosta muito se parte ou não nos é oferecido no Natal e de como não se anda à bulha por causa de um nome feio ou de uma pirraça.Enfim. Era assim que a maioria de nós, adultos – se não todos – via os adultos quando não o éramos e nos imaginávamos quando o fôssemos. Acreditávamos que todas as dúvidas e perplexidades se desvaneceriam. Que seríamos outros, completamente outros, a rimar com as caras compridas e as rugas e os cabelos brancos e aquela preocupação toda com coisas tão desinteressantes como empregos e contas. Antecipávamos uma espécie de unidimensionalidade, uma simplificação da vida que, em crianças, nos parecia tão enigmática e inexpugnável.Descobrimos exactamente o inverso. Que tudo se complica, que tudo surge cada vez mais indecifrável, que não fazemos ideia nenhuma de para onde ir e como, que nada é previsível nem óbvio. Que temos de inventar o caminho à medida que avançamos e que não há mapas nem tabuletas nem sequer sentidos proibidos. E que, seja o que for que façamos ou pensemos, por melhor que nos comportemos, não há recompensa garantida a não ser, talvez, a ideia que fazemos de nós próprios – sendo que a ideia que fazemos de nós nunca é grande coisa porque nos conhecemos bem demais. E que temos de aprender a disfarçar o pavor que tudo isso nos faz sentir – porque, afinal, somos adultos e espera-se de nós (até nós esperamos de nós) que saibamos o que andamos para aqui a fazer. Há panaceias para isto, claro. Sistemas organizados de sentido como as fés e as religiões, sejam de que género forem. Pertenças a comunidades que nos conduzem num articulado de regras e interditos. Compromissos a que nos amarramos para reduzir as opções. Normas e leis. Tabus. Palavras a que prestamos vassalagem e servidão. E causas, sejam imateriais ou pessoas, às quais nos devotamos. Crianças, por exemplo. Por elas é preciso ser forte e monolítico, capaz. Por elas é necessário colocar a máscara do adulto e alisar o mundo. Fazê-lo parecer um lugar unívoco, programável, antecipável. Fazer-nos parecer de confiança. Criar esta ilusão que cremos essencial e que talvez o seja – como saber? Como aferir? Criar a fonte desta angústia e perplexidade, criar e a um tempo ocultar este travo amargo que nos acompanha desde que descobrimos o segredo, este segredo – o de que nada sabemos e nada saberemos, que nada controlamos e nada podemos. Que, como escreveu Pessoa na pena de Ricardo Reis, tudo é tão pouco, o mais é nada – e é preciso calar.

In Sermões impossíveis da Notícias Magazine de 17 de Fevereiro e publicado aqui: http://5dias.net/2008/02/23/o-maior-segredo/

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