segunda-feira, março 24, 2008

Um breve conto neste pós Páscoa


Humberto Borges ©

Uma garrafa de whisky, se faz favor, disse Carlos para a solicita caixa do supermercado AC Santos do bairro, mantendo-se imóvel a fitar o inexistente.
Deus, se por acaso existisse como lhe diziam, tinha-lhe roubado a vista assim que germinara no utero materno. Talvez por isso mesmo nunca acreditou que existisse uma entidade que diziam ser de bondade infinita que tivesse escolhido logo a ele, uma criança ainda sem experiência alguma em pecados, para o privar assim da visão. Pensava sempre que, caso existisse, Deus estaria certamente a curar uma imensa ressaca no dia em que nascera. Se nele havia pecado teria sido precisamente adquirido depois, há medida que crescera e que se apercebera da importância do que não tinha. Quando a inveja o começou a roer, por dentro e por fora. Inveja daqueles que viam e que lhe tentavam descrever um mundo que ele desconhecia, que nem sequer conseguia imaginar como fosse. As pessoas podiam dizer-lhe que uma casa desenhada por uma criança era quadrada, que o sol que o aquecia nos fins de tarde encostado ao banco de jardim, envolto em divagações ébrias, era amarelo ou que a bola de futebol que fazia vibrar multidões era redonda. Para ele podiam ser como quisessem porque o cérebro pura e simplesmente não lhe devolvia uma imagem daquilo que não conseguia ver. Certamente que aquele corpo frágil e engelhado se enchera de pecado cada vez que odiara a mãe e a desejara calar para sempre quando esta lhe repetira que tivesse paciência, que se tinha de conformar porque se não via o mundo que Deus tinha criado era porque tal tinha sido a vontade desse mesmo Deus. Que incongruência! Criar uma obra destas e depois privar alguns de a verem.
Sim, agora era um homem cheio de pecado. Que mais se lembraria Deus de lhe tirar, pensava amiúde.
De que marca? perguntou-lhe aquela voz familiar. Qualquer uma, respondeu Carlos, enquanto o resto da frase lhe morria na boca e lhe pairava no pensamento. Porque a verdade é que qualquer marca lhe servia para apagar da memória as imagens que nunca tinha tido.

1 comentário:

Anónimo disse...

Upi, upi, um conto para saborear : )
Beijinhos da fã marsupas