quarta-feira, julho 26, 2006


Humberto Borges ©

Acordava todos os dias bem disposta. A essa hora já ele havia saído há muito, rumo àquele emprego que lhe dava um bom dinheiro, e o dia apresentava-se-lhe sorridente. Pelo menos até à hora em que voltariam a encontrar-se, lá por alturas da hora do jantar. Aquela alegria dissipava-lhe os gritos da noite anterior, a violência com que a mão dele avançara sobre ela e até as dores nas costelas, moídas de tanta pancada. Sabia que tinha à sua frente um dia inteiro sem o ver, cheirar ou ouvir e, melhor que tudo, sem o ter atrás de si qual cão atrás de uma cadela com cio. Era com gosto e sem dores que saltava da cama, que se arranjava e chamava uma, duas, três ou quantas vezes fossem necessárias pelos miúdos que teimavam em não se levantarem. Ela, filha daquele casamento mais preso a uma necessidade do que a um sentimento que já não existia. Ele, fruto de uma brincadeira de adolescência, quando a barriga lhe inchou sem que percebesse porquê.
Os dias corriam-lhe bem entre a azáfama de apanhar o autocarro a horas, deixar os miúdos à porta da Casa Pia e correr para casa da patroa onde a lida de uma casa senhorial a esperava. Bem vista entre todos, mostrava-se sempre aprumada, educada, limpa e ciosa do seu trabalho. Era responsável por mostrar às garotas mais novas as manias dos patrões, manias que os faziam despedir pessoal num corrupio desgraçado. Menos ela. Ela mantinha-se ali ia para 15 anos, desde o dia em que a mãe a levara pela mão e assim lhe ensinara a arte daquelas lides. Brincou com as crianças daquela casa e agora, as novas crianças daquela mesma casa viam-na mais vezes que à própria mãe. Adoravam-na e nutriam por esta mulher um carinho desmedido que lhe compensava a falta de amor onde lhe seria devido. E era assim, distribuindo sorrisos e boa disposição, que conseguia levar aquela casa às costas como se da sua se tratasse.
Ao fim do dia, era-lhe fácil arranjar ânimo para ainda ir ter com a mãe à tasca que agora, reformada, explorava e onde, por entre queixumes e desabafos, servia pratadas de caracóis umas atrás das outras acompanhadas de imperiais, de panachés, de minis ou de outra coisa qualquer que alguém inventava na hora. Ajudava aquela mãe corrompida por uma vida sem sorrisos e conseguia enxotar o marasmo que ali estivesse só por ali entrar. Os clientes já a conheciam, brincavam com ela e com aquela força animica sem igual.
Até ele lhe entrar pela porta adentro, com os miúdos pelos braços, distribuindo tabefes e azedume. Ai, por mais forças que fosse buscar para o enfrentar, o mundo desabava-lhe em cima e a boa disposição fugia-lhe para parte incerta. Nesse preciso momento sabia que só voltaria a sorrir na manhã seguinte. Ele deixava-se ficar, carrancudo, como se o mundo fosse acabar no dia seguinte e só ele o soubesse, exigindo-lhe imperial atrás de imperial enquanto lhe passava a mão pegajosa pelo traseiro, indicio de vontades não correspondidas. Com cara de tão poucos amigos que os próprios clientes da tasca punham cara de caso e iam-se despedindo, saindo aos poucos. Até só restarem os dois. E então, qual touro na arena que enfrenta uma morte anunciada, ela agarrava nos miúdos já adormecidos, virava-se para ele e dizia-lhe: Vamos para casa que já é tarde.

1 comentário:

Anónimo disse...

ó bolota, adoro estas tuas estórias. Posso pedir mais? Poder posso, posso é não as ter. Mas fica aqui o comentário que gosto bastante.
Marsupilami