segunda-feira, julho 17, 2006

A propósito de regras


Humberto Borges ©

Não se deve levantar da mesa antes dos outros acabarem. Desde criança que lhe diziam aquilo e desde criança que lhe custava horrores cumprir tal coisa. Na altura, quando era pequeno, não gostava de ficar à mesa a ouvir as conversas chatas dos adultos. A guerra da Índia do tio e o tempo que lá tinha estado preso. As histórias da mãe, que eram sempre as mesmas sobre primos, tios, avós e bisavós que ele nunca conhecera nem nunca conheceria. O irmão que, inflamado e ruborizado, discutia futebol. As discussões de politica entre o pai e a tia que acabavam sempre aos gritos e insultos. Não gostava. Além disso, faziam-lhe sempre um exagero de perguntas, como ia a escola, qual a matéria que mais gostava, o que queria ser quando fosse grande, se já tinha namorada... Tudo acompanhado de risinhos meio parvos. Quando perguntava se se podia levantar diziam-lhe sempre que não, acrescentando a frase “fica aqui a conviver cagente”. Mas se ele era criança e eles adultos, de que se trataria aquele conviver? Não entendia.
Agora, adulto, a mesma falta de paciência para as mesmas conversas chatas mantinha-se. Estavam todos mais velhos, é certo, a começar por ele mesmo. Mas nem por isso as conversas tinham subido de interesse ou sentia mais entusiasmo por conviver com aqueles adultos. E custava-lhe ficar ali sentadito e aparentemente sossegado enquanto lhe perguntavam pela enésima vez “Então, Joãozinho, e o teu emprego? Já foste promovido? Quando é que arranjas um emprego melhor? E quando é que arranjas namorada e te casas? E quando é que tens filhos, Joãozinho?" Não gostava mesmo nada. Mas lá ia ficando. De figura de corpo presente, ausente em pensamentos mil, só seus. Tal como quando era o pequeno Joãozinho. Só que agora tinha uma agravante. Enquanto adulto, tinha desenvolvido um apurado gosto por comer e beber, pelo que o fim das refeições lhe era ainda mais doloroso. De barriga cheia bastante acima das suas necessidades, sonhava em sair dali para fora e esticar-se no sofá a fazer a digestão como uma jibóia. Mas não. Continuava a ser falta de educação sair da mesa antes dos outros acabarem e se o fizesse arriscar-se-ia mesmo a ouvir “Ai, Joãozinho, não te levantes já. Fica aqui a conviver cagente”.

Sem comentários: