quarta-feira, março 07, 2007


Humberto Borges ©


Escreveu a palavra tecto e tudo lhe caiu em cima. Tinha esta particularidade. Cada vez que escrevia uma palavra qualquer, algo acontecia. Estava por isso proibido de escrever fosse o que fosse. O que era uma grande pena porque até gostava bastante de escrever e tinha que fazer um enorme esforço para estar de caneta ou lápis parados. Lembrava-se de um dia ter escrito comboio quando estava numa sala de espera para uma coisa qualquer e de repente toda a gente ter ficado sem braços e sem pernas. Uma aflição! Tudo a gritar, a chorar, aos berros! Sangue a esguichar por todos os lados, a maior porcaria. Podiam pensar que tudo se resolveria se escrevesse outra palavra. Mas não era bem assim. O problema é que nunca sabia o que aconteceria cada vez que escrevesse uma palavra. Dessa vez, por exemplo, escreveu operação pensando que os membros daqueles desgraçados se uniriam de volta ao corpo e assim compor as coisas mas ficou simplesmente esfomeado e teve que ir jantar a correr deixando aquela gente toda para ali, a retorcer-se agonizante, sem pernas nem braços. Nem nunca mais soube o que lhes aconteceu. Houve também uma vez em que escreveu a palavra noite e apagaram-se as luzes de todo o mundo. Foi uma complicação! O mundo inteiro às escuras. Passou dias e dias a escrever incessantemente palavra atrás de palavra a ver se o mundo dava à luz. Mas nada. Por alguma razão especial, daquela vez nenhuma das palavras que escreveu teve qualquer tipo de efeito. Luz, sol, claridade, relâmpago. Nada. Escreveu tudo que lhe veio à memória que tivesse que ver com luz e nada. Até que se lembrou de escrever nuvem ao imaginar uma nuvem com raios de sol reflectidos e foi ainda pior. O mundo inteiro ficar coberto de algodão doce. As gentes coladas umas às outras, pegajosas e docinhas. Mas todos numa fúria levada da breca e a praguejarem intensamente umas com as outras. Em desespero de causa, e porque toda a gente bramava com ele fazendo-o temer pela sua própria vida, escreveu a palavra sorriso. Foi o que lhe valeu e o salvou de pior destino. O mundo tornou-se outra vez luminoso e o algodão doce desfez-se em ar.

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