quinta-feira, janeiro 11, 2007


O cavaquinho, 1915
Amadeo Souza Cardoso

À noite, quando a sala finalmente se esvaziava do intenso burburinho e o segurança fechava a última porta do museu, César podia enfim baixar o braço e pousar o cavaquinho sem cordas que nunca tocara. Suspirava aliviado, exercitava os braços doridos e dormentes e saltava para o meio da sala onde o cientista de cigarrilha e o rapaz impar em acrobacias, seus companheiros dos quadros vizinhos, se exercitavam também. Atrás de si ouviam-se já as risadas das arrogantes bonecas de vestidos às bolas coloridas de tinta recentemente restaurada, que troçavam de Amélia, a velha e empoeirada boneca de pano que lhes servira de modelo. Amélia não lhes ligava nenhuma e pondo o seu ar altivo de respiração contida por uma cinturinha bem apertada por um firme arame, partia sala fora à procura do seu amigo. Há meses que estavam ali, naquele museu, quase lado a lado nas mesmas paredes. César, com o seu ar meio abrutalhado, achara-lhe piada logo na primeira noite, assim pequenina e decidida. Desde então, por entre a algazarra que todas as noites se formava naquelas salas, quando todos decidiam descansar das cãibras de horas fio na mesma posição e se entretinham com jogatanas de cartas acompanhadas de gargalhadas de papagaios e do som de violinos mudos, estes dois entretinham-se sim mas com as estórias que Amélia contava de quando fora boneca nova e viçosa e vivera entre humanos. Mundo que Amélia conhecera afinal muito melhor que César, nascido que fora numa tela. Mundo que tanto devia ter mudado, entretanto, desde que a haviam fechado e exposto numa caixa de acrílico. Ali fechados naquelas salas, e à falta do mundo em si, Amélia aproveitava os objectos que alguém se lembrara de pintar nos quadros companheiros dos seus próprios para contar o que conhecera. Mostrava-lhe noite após noite o sabor dos morangos, dos alperces, das peras e dos limões acabados de. Ensinava-lhe a brincar com as várias máscaras com que os humanos se escondiam sem contudo conseguir explicar porque o faziam. Indicava-lhe as paisagens feitas de verde e de rosa com as casas empoleiradas à beira de rios e habitadas pelos humanos que se passeavam por diante deles durante o dia. Casas com janelas donde espreitavam, escondidos. Contava-lhe ainda um sem fim de segredos sobre a vaidade feminina, para que serviam os espelhos e o quão belo podia ser o corpo de uma mulher, ensinando-o em seguida a penteá-la com pentes e escovas e a enfeitar-lhe os cabelos com pequenas camélias amarelas.
César deliciava-se com tudo aquilo. Ouvia-a em silêncio, os lábios permanentemente armados em sorriso. Só conseguia dizer-lhe o quanto gostava de falar com ela quando a verdade é que mal lhe dirigia a palavra, limitando-se a ouvi-la, inebriado pela sua doce voz. Ninguém sabia mas acalentava um sonho. De um dia poder juntar cordas ao seu cavaquinho e fazer-lhe uma serenata montado num dos cavalos azuis que por ali trotavam todas as noites. Em cima daquele cavalo, pensava, haviam de fugir dali para fora em direcção a um mundo cheio de novidades que Amélia tinha para lhe mostrar, deixando atrás de si um imenso vazio branco que surpreenderia o segurança da manhã.

1 comentário:

Anónimo disse...

Ai os cavalos... lindos, se calhar foi por isso que gostei tanto deles, por os imaginar ao César à Amélia juntos....
Quero mais....
Marsupas