quarta-feira, outubro 18, 2006


Humberto Borges ©

Há já alguns meses que Rui não dirigia uma orquestra. Quase dois anos, para ser mais preciso. Desde que partira mãos e braços num mergulho mais afoito em mares açorianos que as operações haviam sido sucessivas, afastando-o daquilo que mais gostava de fazer. Tivera sorte, disseram-lhe. O que mais lhe doera nem sequer foram os ossos que lhe teimaram em juntar-se desajeitadamente. Foi ver-se assim, afastado das suas lides de maestro, sem poder orientar todas aquelas cordas, ver como bombos e pratos se curvavam aos seus gestos e como os metais obedeciam ao primeiro sinal que lhes fazia para entrarem. Tinham sido horas de exercícios acompanhadas por uma fisioterapeuta sádica que soltava um sorrisinho a cada queixa que tinha. Hoje, finalmente, aterrara em Lisboa, num dos seus costumeiros dias de sol que o aquecia, mantendo-se a alma fria com o temor que o jeito de maestro se tivesse ido embora juntamente com as ligaduras, ferros e talas que lhe aprisionaram os membros por tanto tempo. Tinha esmerado na indumentária. Escolhera algo casual não esquecendo o toque clássico de uma gravata. Simulando confiança e determinação, entrou em palco acompanhado da sua nuvem de cabelo branco e dos óculos na ponta do nariz, perante um público que ansiava por o ver outra vez. Cumprimentou este público que esgotava a sala, virou-se de costas, nervoso e trémulo, e encarou toda aquela gente que esperava um sinal seu. E de repente ao seu primeiro gesto, a sala encheu-se de sons e tudo lhe regressou como dantes. Onde as suas mãos arrancavam sons ao silêncio que se impunha. Sons dispares que percorrendo a sala se organizavam e se tornavam música aos ouvidos dos que ali se haviam deslocado. E Rui, feliz, acompanhou tudo aquilo com lágrimas intensas que lhe lavavam o rosto e lhe dissipavam a dor.

1 comentário:

Anónimo disse...

e eu toda contente a ler.... com um sorriso de orelha a orelha. Provocas-me isso bolota, e eu gosto!
Marsupilami