domingo, maio 14, 2006

Vida de trapo


Humberto Borges ©

Era o primeiro dia do I Congresso Mundial de Trapos e Paninhos. Tinha havido grande discórdia quanto ao nome do congresso por poucos se verem como trapos. Mas as estórias que tinham para contar em viva voz levavam a que se esquecessem de tudo o mais e a entrar apressados, aos gritinhos e às cotoveladas, no pavilhão decorado a papel e flores. Sim, porque tecidos ou panos só mesmo na plateia ou no palco.
A quantidade de cores e texturas era tanta como as vidas que ali levavam para partilhar e que aos poucos iam desfilando palco fora. Havia a flanela de risquinhas muito finas, beges e azuis escuras, que tinha feito parte de um pijama meticulosamente dobrado todas as manhãs. A popelina de flores miúdas e coloridas, que fora bata de negra cansada de tantas escadas esfregar. A seda rosa claro, que vivera como fita de cabelo que aprumara quem ensaiava os primeiros e assustados passos em pontas. A fazenda, cinzenta e lúgubre, testemunha da infelicidade e desespero de alguém que todos os dias caminhara para um emprego que não queria ter. O tafetá de seda natural, em vestido dum verde água perfeito, que tantas mulheres convencera de serem únicas no mundo, nem que apenas por uma noite. O pano crú que cobriu uma camilha e partilhou uma vida inteira com retratos a preto e branco e jarras de empoeiradas flores secas. O cetim feito fita branca, pronta a suster as alegrias de um final de curso cheio de promessas. A sarja pintalgada a corações vermelhos, que servira de avental a mães que mimaram filhos com bolos, biscoitos, tartes e tarteletes. O algodão branco que, feito almofada bordada em enxoval nunca estreado, acalentou a esperança de uma mulher honrada. O tule negro em forma de véu, que tapara a vergonha de uma viúva infiel. A malha de seda vermelha feita saia pingona, salientando curvas para gáudio de olhos cheios de cobiça e desejo.
E havia o linho, que se apresentava ali, honradamente acompanhado pelas suas bainhas abertas, como o grande senhor da noite e que fora aguardado com curiosa expectativa. Esse sim, o verdadeiro trapo, cansado de tantas vezes ter sido cosido, cortado, lavado, passajado, engomado e bordado. Porque, para quem não sabe, o Senhor Linho tinha servido de lençol a dar as boas vindas a quem acabara de chegar à vida, de vestido primaveril que acompanhara o nervosismo e a hesitação de uma rapariga no seu primeiro beijo, novamente de lençol que assistira a paixões tão inflamadas para depois as ver morrer e perderem-se lentamente em noites de solidão e gelo, de toalha de mesa fiel a discussões cheias de silêncios, de lenço que assoara narizes e enxugara lágrimas de quem fingira arrepender-se, para acabar os seus dias velho, sujo e esquecido. Tão esquecido que só pegavam nele para o passar por um chão sujo e porco. Cheio de nódoas e rasgões, o Senhor Linho apresentava-se naquela noite perante uma plateia que começara ululante e que aos poucos se viu entristecida pela evidência clara que, afinal, trapos eram todos, com vidas vividas mas passadas e que o I Congresso Mundial de Trapos e Paninhos não era mais que uma imensa feira de vaidades esquecidas.

1 comentário:

Anónimo disse...

Adorei este teu congresso amiga! Continua om estas ficções, xim ?!